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O INVENTOR DO POP FRANCÊS NA ERA DO ROCK
É verdade que Gainsbourg veio de um ambiente mais liberal e propício à criatividade que Chico Buarque: a França, ainda por cima Paris, terra do existencialismo, os “filhos de Karl Marx e da Coca-Cola”, como diz Godard – ou, para citar agora-me-foge-quem, aquela interpretação mais radical do “carpe diem” latino, não de simplesmente aproveitar cada dia, mas sim vivê-lo como se fosse o único, queimar a vela pelas duas pontas e pelo meio, não confiar no futuro, pois a vida e o amor são apenas camuflagens frágeis e passageiras que escondem o nada, ô dó. Como dizem os existencialistas franceses, Deus não existe, mas em compensação os franceses sim – ou, na frase do próprio Gainsbourg, “o homem criou Deus, o inverso está por ser provado”.
Talvez Gainsbourg tenha sido quem melhor aplicou o existencialismo à música pop, tanto em suas letras quanto em sua própria vida. Para começar, os homens franceses são mestres da feiúra charmosa, e Gainsbourg era típico (“a beleza do feio nota-se imediatamente”, dizia), inclusive sonoramente, com a voz que se espera de quem fumava cinco maços de cigarros por dia – hábito que manteve até o fim, sem contar bebida, drogas e noitadas, mesmo após sofrer três enfartes e perder dois terços do fígado. Bem que amigos e médicos o aconselharam, mas ele nem quis saber, justificando: “Eu sobrevivo desde que nasci. Minha mãe quis abortar quando engravidou. Em 1942 a polícia nazista tentou nos prender. Minha mãe me salvou com minhas duas irmãs. Depois cresci sob uma boa estrela amarela, a que usei durante a ocupação. O que vivi depois é um presente.”
Serge Gainsbourg ganhou o presente da vida em 2 de março de 1928, batizado Lucien Ginzburg e filho de judeus fugidos da Rússia. Seu pai era pianista e transmitiu este dom ao filho, que logo arrumou empregos e bicos como transcritor de partituras e pianista de jazz. Um dia o rapaz percebeu que poderia ganhar um pouco mais como compositor, e resolveu adotar um pseudônimo – não para esconder sua ascendência judia, mas sim porque “Lucien Ginzburg é nome de barbeiro de bairro”. A princípio assinou-se Julien Crux, mas após três anos escolheu o prenome Serge, forma francesa de “Sergei”, em honra a seus antepassados russos, e passou a grafar seu sobrenome como Gainsbourg, gozando seus professores que não conseguiam escrever Ginzburg.”…
Logo Gainsbourg chamou a atenção do meio musical. Descoberto pelo grande empresário e produtor franco-búlgaro Jacques Canetti (também descobridor de Jacques Brel, Michael Legrand e muitos outros) assinou com a Philips (onde gravaria por toda a vida – quem diria ser esta a mesma Universal Music de hoje?) em 1958 (pois é, ele já tinha trinta anos). Em 31 anos Gainsbourg gravou 27 LPs (incluindo um em dupla com seu primeiro parceiro, o compositor e arranjador Alain Goraguer, e a atriz/cantora Juliette Greco, outro com Brigitte Bardot e, claro, um terceiro com Jane Birkin), além de ter músicas ou versões gravadas por meio mundo.
As pérolas de Gainsbourg gravadas por outros incluem “Poupée De Cire, Poupée De Son”, lançada por France Gali (e que muitos de vocês devem ter conhecido com Wanderléa, “Boneca De Cera, Boneca De Pano”), “Comment Te Dire Adieu” (versão de “It Hurts To Say Goodbye” do norte-americano Jack Gold) e “L’Anamour” (ambas sucessos com La Hardy), “69 L Ánnée Erotique” (lançada pela atriz e cantora inglesa Jane Birkin), “La Javanaise” (lançada por Juliette Greco e regravada por Rita Lee nos anos 90) e “Harley-Davidson”, sucesso de Brigitte Bardot, regravado pelo Shocking Blue (sim, o grupo holandês) e a inspiração para o início de “Metamorfose Ambulante” de Tio Raul – além de grande ausência numa recente coletânea de músicas dedicadas à mítica motocicleta.
Embora não fosse estritamente roqueiro, o versátil Gainsbourg era muito bom de rock, muitas vezes parodiando e esculhambando o gênero – que tal, em plena era do twist, ouvir um disco chamado “Réquiem Pour Un Twister”? E “Oh Oh Cheri”, rockabilly da dupla Jil & Jan, sucesso de Françoise, foi parodiado por Gainsbourg como “Oh Oh Sheriff”, gravado num LP todo em francês da inglesa Petula Clark. Sempre bem-humorado, Gainsbourg oferece opções para todos os gostos, do melhor ao pior, da escatologia à irreverência e humor negro, como em “En Relisant Ta Lettre”, que comenta os erros de ortografia do último bilhete da amante suicida (“Ao reler tua carta/noto que tua ortografia é como tu/‘É tu que eu amo’/tem um “m” só […] ‘eu te suplico’/faltou o pingo no “i”/‘sou escrava’/não tem crase/‘das aparências/isso é ridículo’/O “i” é maiúsculo…” À primeira vista podendo soar machista, Gainsbourg gozava até o machismo, como em “Les Femmes, Ça Fait Pédé” (“As Mulheres Nos Dão Vontade De Virar Bichas”).
Aliás, Gainsbourg parodiava não só o rock, mas tudo, inclusive ritmos jamaicanos (“Couleur Café”, “Pauvre Lola”) e música erudita: “Jane B.”, cantada por La Birkin, é explicitamente inspirada no Prelúdio Número 4 de Chopin, e o “Mercado Persa” de Kethelby foi transformado em (fiquem sentados) “Oh My Lady Heroine”. E isso não é nada perto de seu arranjo reggae para o hino nacional francês em 1979.
Mantendo pique e inspiração até o fim, Gainsbourg, logo antes de morrer, em 1990, ainda compôs dois discos inteiros para Jane Birkin (Amours Des Faintes) e Vanessa Paradis, a Carla Perez francesa, intitulado Variations Sur Le Même T’Aime. Notaram o trocadilho do título? Gainsbourg, já comentamos, compunha muito bem em francês e também em inglês, sendo grande fã de aliterações e jogos de palavras em geral. Outro bom exemplo é sua letra para “Comment The Dire Adieu”, cheia de trocadilhos com o fonema “ex”.
Citamos a versão reggae de Gainsbourg para “A Marselhesa”, carro-chefe de seu LP ‘Aux Armes Et Cetera’, de 1979. Franceses mais patriotas, incluindo veteranos da segunda guerra mundial, protestaram em massa. Emérito provocador, Gainsbourg conseguiu chocar até seus conterrâneos franceses, para quem “merde” e “putain” não são palavrões. Para Gainsbourg, escandalizar o Vaticano (como ele fez com “Je T’Aime… Moi Non Plus”) era moleza. Ele gozou até a si mesmo e sua herança judaica num LP inteiro, ‘Rock Around The Bunker!’ Sem falar em “Les Sucettes”, que France Gall gravou sem perceber a, ahn, sutileza da letra: “Aninha adora pirulitos/Pirulitos de aniz […] quando o suco chega à garganta de Aninha/ela vai ao céu […] e quando ela sente que debaixo da língua/só ficou o palito/ela corre de volta à loja”. Acredite se quiser: Gali só se deu conta da lambuzeira quando o disco se tornou grande sucesso. (Fula da vida, ela nunca mais falou com Gainsbourg. Mas, também, quem mandou não prestar atenção?) Menos sutil foi a reação bastante espontânea de Gainsbourg ao se deparar com a gritadeira Whitney Houston num programa de TV: “I want to fuck you!”.
Mas Gainsbourg, sátiro e gozador, foi também grande pessoa. Casado com Jane Birkin durante doze anos, continuou seu amigo e parceiro musical mesmo após o fim do romance. Ambos tiveram uma filha, Charlotte, também atriz e cantora (e que gravou com o pai um dueto cujo título diz tudo, “Lemon Incest”). E quatro anos antes de morrer Gainsbourg produziu outro pepê, o garoto Lulu, em parceria com Bambou, jovem modelo francesa de origem chino-alemã; Gainsbourg lhe dedicou uma música cujo início diz “Quando eu sumir, jogue um pouco de urtiga sobre meu túmulo, meu pequeno Lulu.”
Enfim, o assunto Serge Gainsbourg é dos mais ricos, assim como sua obra. Bem comentou a feminista Bardot ao morrer o amigo: “Ele me provou que alguns homens podem ser gênios.” E toda sua obra está disponível, devidamente reeditada pela Philips francesa numa caixa de onze CDs, ‘De Gainsbourg A Gainsbarre’, bem como todas suas letras, reunidas em ‘Dernières Nouvelles Des Étoiles’, livro organizado pelo escritor e gainsbourgólogo Franck Lhomeau e lançado pela editora parisiense Plon Pocket em 1994. Parafraseando o próprio Gainsbourg, ao rever sua obra, há muito poucos erros a apontar…
01 | Melody
02 | Ballade de Melody Nelson
03 | Valse de Melody
04 | Ah! Melody
05 | L’Hôtel Particulier
06 | En Melody
07 | Cargo Culte